Após o anúncio do apoio financeiro fornecido pelos maiores órgãos do tênis para cerca de 800 tenistas de rankings mais baixos durante o período da pandemia do coronavírus, a discussão da distribuição de premiação reacendeu no mundo do tênis. Nesta semana, a ex-tenista Marion Bartoli, campeã de Wimbledon em 2013, entrou na discussão no último episódio do Match Points e deu mais uma de suas opiniões polêmicas na mesa redonda. A francesa argumentou que a premiação de duplas é muito alta e que deveria ser distribuída para jogadores de simples que disputam qualifyings e challengers.

“Sei que não farei amigos dizendo isso, mas precisamos falar: eu não entendo ter tantos torneios de duplas o ano inteiro. Eu entendo ter em Grand Slams e Jogos Olímpicos, já que duplas faz parte da história do tênis, mas estive em alguns torneios com a minha atleta (Bartoli treina Ostapenko) e eu vi… esses duplistas têm equipes enormes, tipo de seis pessoas! Quando eu jogava não conseguia pagar seis pessoas para viajar comigo o ano inteiro. Eles conseguem ter seis pessoas na equipe e só jogam duplas! Por que não pegamos parte do dinheiro das duplas e damos para qualifiers, para alguém que só joga Challengers? Eu não entendo. Em duplas você não faz o mesmo esforço que em simples. Você não treina tanto quanto. E eles (duplistas) continuam, toda santa semana, a ganhar todo aquele dinheiro. Não sei se devemos acabar com as duplas, mas diminuir o dinheiro e dar essa premiação para os qualifiers deveria ser uma solução.”

Marion Bartoli

Me pergunto qual duplista a Bartoli viu com uma equipe de seis pessoas. Eu nunca vi um na minha vida. Nem as duplistas tops da WTA, que na grande maioria também jogam simples e são bem-sucedidas nas duas áreas (a canadense Gabriela Dabrowski falou mais em seu twitter), têm equipes de seis pessoas. Na ATP, onde há mais especialistas em duplas, dá pra contar em uma mão as equipes que têm dois técnicos. O francês Nicolas Mahut, ex-número 1 do mundo nas duplas e dono de 30 títulos na categoria, ironizou a fala de Bartoli e pediu para que sua compatriota nomeasse um duplista que tivesse uma equipe tão grande assim. O também francês Edouard Roger-Vasselin, atual 18 do mundo e campeão de Roland Garros, lamentou as falas de Bartoli e refletiu a falta de prestígio das duplas na França em entrevista para o Eurosport.

A única situação que consigo imaginar de um time de duplas tendo algo parecido com seis pessoas presentes é quando algum familiar vai para os torneios. São duas pessoas querendo o companheiro, filhos ou amigos por perto. É essa a sua equipe paga de seis pessoas, Bartoli? Quando os jogadores de duplas conseguem ter alguma condição de bancar uma terceira pessoa, eles dividem um técnico. O belga Joran Vliegen, número 36 no ranking de duplas, reagiu aos comentários de Bartoli indicando que ele e seu parceiro, o compatriota Sander Gille, só foram conseguir ter condições financeiras para dividir um técnico recentemente.

Sim, as camadas mais baixas do tênis precisam de uma estrutura melhor, isso sempre foi discutido e ninguém irá dizer o contrário. Há diversas maneiras diferentes de executar isso e o momento para discutir o assunto é agora, mas sugerir a diminuição de premiação de uma parte do tênis que já é marginalizada não faz o menor sentido. O mesmo argumento (péssimo) que Bartoli utiliza, de que duplistas não deveriam ganhar o tanto que ganham porque fazem menos esforço e jogam menos tempo, poderia ser usado contra o tênis feminino. A própria Bartoli não concorda com isso, então por que dizer o mesmo para outro grupo de pessoas? No fim, não ficou parecendo ser meramente uma busca de soluções, como ela diz ser, e sim puro oportunismo em querer usar a atual situação do mundo para atacar um grupo de pessoas.

Tênis não é apenas esforço físico e muito menos um trabalho pago por hora. Simples e duplas são disciplinas diferentes, com especialidades completamente distintas. Sim, duplas exige menos do corpo, e por isso muitos duplistas conseguem ter uma carreira duradoura, além de também permitir que muitos simplistas façam a transição para as duplas, alongando a sua carreira (e isso é ótimo, não?), mas também exige mais inteligência tática, jogo de rede, um tempo de reação impecável, estratégia e comunicação. A categoria das duplas precisou se adaptar a outros moldes, com um formato mais curto, para que mais simplistas pudessem jogar também, se tornando uma renda extra para muitos, inclusive para você, Bartoli, que ganhou três torneios de duplas, disputou 199 partidas na categoria e ganhou mais de 350 mil dólares em sua carreira.

Me parece ser uma linha de pensamento muito estranha a de atacar colegas de trabalho, sugerir que uma parte da tour que já ganha menos receba ainda menos e achar que o problema da distribuição de dinheiro está ali, mas nem citar a quantidade exorbitante que um campeão de simples ganha nos Grand Slams, por exemplo. A solução, aliás, também não está aí. Ela deve ser pensada para que não afete o circuito e as pessoas que fazem parte dele, fazendo com que mais pessoas possam viver do esporte. Agregando e não excluindo ou beneficiando apenas um grupo.

Hoje, nenhum tenista começa a sua carreira mirando em ser duplista, e com razão. Ele sabe que vai ser impossível se sustentar no caminho até um bom ranking, que nunca será prioridade nos torneios, que conseguir patrocinador vai ser mais difícil, que a atenção da mídia é quase nula e muitos outros poréns. Um problema constante na ATP são os figurões que controlam os torneios não tendo a menor vontade de dar uma chance para o produto. Gerard Tsobanian, dono do Masters 1000 de Madri, já ameaçou não realizar a chave de duplas e recentemente declarou que “duplistas são um fardo para nós (torneio de Madri). Eles tiram vantagem do sistema, mas não vendem um único ingresso. São apenas gastos, não há retorno no investimento. Quando um produto não vende, você o tira da prateleira, não é?”

Não sei o que é mais curioso, o figurão querendo esperar o maior retorno financeiro da história de um produto que as organizações, assim como ele, não dão a mínima durante o ano inteiro ou imaginar como que ele sabe se a pessoa comprou o ingresso pra ver dupla ou não. Gerard, te deixo duas imagens, uma R1 de duplas e uma R2 de simples, da última edição de Madri (a do ano passado, não o fiasco em forma de videogame deste ano). Questão de perspectiva.

Apesar dos percalços, as duplas percorreram um longo caminho nos últimos anos e a profissionalização e o nível de jogo nunca estiveram tão altos. Se hoje tem mais gente podendo viver de tênis, se sustentando jogando apenas duplas e podendo pagar um técnico, é por movimentos como ao dos irmãos Bryan, que 15 anos atrás processaram a ATP e impediram o fim das duplas. É por pessoas como Bruno Soares, Jamie Murray, Marcelo Melo e outros duplistas que fazem/fizeram parte do Conselho dos Jogadores da ATP e brigaram internamente por direitos que hoje são realidade. É pelos fãs, que dão a voz nas redes sociais, vão aos torneios e prestigiam a categoria. Temos mais jogos de duplas sendo transmitidos, algo que 4 anos atrás sequer existia na maioria dos Masters 1000. É uma luta que vale a pena comprar e que está gerando frutos. O tênis como um todo se beneficia de qualquer tipo de exposição e a dupla deveria ser tratada como parte do produto, não como extra. A mentalidade de exclusão não beneficia o esporte em nada, segregando e perdendo a oportunidade de alcançar novos públicos.

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